Eu estava saindo de uma loja de cigarros, uma tabacaria, onde entrei para ver se achava um petit cohiba para presentear um amigo. Comia um chocolate, absorto, eu, não o chocolate, que não é dado a reflexões. E de repente chega o Moura, que vocês já conhecem.
É claro que vocês já repararam que na vida nem tudo que tem importância para uns tem para outros, não é mesmo? Acontece com freqüência vermos algumas pessoas extremamente aborrecidas com alguma coisa que para nós não faz o menor sentido. E vice-versa. Custamos a entender como a pessoa pode ter-se aborrecido tanto por tão pouco, mas não dizemos nada, temerosos de ofendê-la em seu aborrecimento ou em sua indignação.
“Come chocolates, come chocolates”, disse-me, bem humorado. E, após perguntar se estava bem e tal, contou-me o seguinte:
“Minha namorada, numa bela manhã de primavera, descobriu um fio de cabelo branco – o primeiro de sua existência – desolada em frente ao espelho, enquanto penteava-se”, começou a contar-me. E prosseguiu: “– Nunca vou pintar cabelo, ela disse resoluta, quase autoritária, com aquele jeito que as mulheres têm de sentenciar, transformando os ditos mais simples em máximas inquestionáveis. Eu a olhei, surpreso. Por um lado estava solidário com sua queixa íntima da implacabilidade do tempo, por outro pensando algo para confortar-lhe pela descoberta. E disse a ela que, aquilo que ela estava anunciando de modo tão solene, não tinha para mim a menor importância: pintar ou não o cabelo era uma questão secundária, tanto podia fazê-lo quanto não. Talvez um tonalizante, mais discreto, tentei brincar”.
Moura olhou-me para ver se eu estava prestando atenção no que ele contava. E pior é que não estava. Eu estava distraído, saboreando o chocolate, observando os cabelos, ou sua ausência, nos passantes da rua ao nosso redor. Como são eloquentes as cabeças das pessoas, homens e mulheres, e seus ornamentos, os externos, que os internos nem sempre são lá muito interessantes.
Penteados para lá, tranças pra cá, gominhas aqui e acolá, piranhas, travessas, coques, varetas, canetas (também escrevem os cabelos!), franjas, puxados, cacheados, arrepiados, alisados… Louros, pretos, castanhos, vermelhos, amarelos, verdes, multicoloridos. Com mechas, sem elas, com luzes (!), ou à média luz. Estilo moicano, nuca batidinha, chanel, Príncipe Danilo (como passa o tempo nos cabelos!). Também os chapéus, boinas, lenços, burcas (vão completando a relação aí, leitoras e leitores). E o culto supremo ao deus cabelo, por caprichos da natureza ou de seus donos, que é a absoluta ausência deles nas lustrosas e orgulhosas carecas.
Moura tirou-me de meus pensamentos puxando-me pela manga da camisa, dizendo que ia ler um poema de sua autoria, inspirado pelo episódio que acabara de me relatar.
Autorizado por ele, transcrevo para vocês. Chama-se À Lua de Fel, de Roman Polanski e é dedicado Para José Henrique da Cruz, o Mutum:
A hérnia é pequena e a dor é grande
(eu deitado pensava, imobilizado)
– Quebrei o pote de silicone para alisar as pontas do cabelo!
(ela em pé, no banheiro falava, preparando-se para sair).
–Se eu fosse um pote de silicone
poderia quebrar, mas a vertebral não!
(eu disse. Senão a morte poria seus urubus de vigia)
Mas os lindos efeitos do pote agora são visíveis,
ela é que já não presta, a coluna.
– Se a nossa coluna fosse como um pote
era só trocar por um mais forte, ainda ouvi
(um mais novo? Um monte de vértebras novas?).
Ela sorriu com a perversidade da inocência,
balançou os cabelos negros com as pontas lisas lindas
e saiu.
Moura olhou mais uma vez para ver minha reação. Eu estava ainda tentando entender o poema que ele havia acabado de ler e enquanto repassava mentalmente suas palavras, não pronunciava nenhuma. “Pareces o Esteves da tabacaria, só que sem metafísica na alma e idéia nenhuma na cabeça” disse o meu amigo, citando o conhecido personagem de Pessoa. Lembrei-me de tê-lo encontrado em um romance recente do valter hugo mãe, a máquina de fazer espanhóis, e eufórico disse para Moura: “Ah, ele aparece, o Esteves, no romance…”.
Mais não pude dizer porque Moura, cortando o ar com uma braçada, pôs-se a discorrer sobre um monte de coisas e concluiu agitado, acho que com versos do poeta português: “Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama. Mas acordamos e ele é opaco. Com cabelo, ou sem, pintado ou não, entendeu”?
E safou-se de minha resposta, atravessando, rápido, a rua.
O atendente da loja de cigarros saiu à porta, com cara de cansado, e cuspiu no chão.